Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

sábado, 23 de abril de 2011

Fundamentos de Filosofia

                                     O que é filosofia e porque vale a pena estuda-la

                                                                                                                                            A. C. Ewing
 
SEÇÃO INTRODUTÓRIA: A ORIGEM DO TERMO FILOSOFIA

Uma definição precisa do termo "filosofia" é impraticável. Tentar formulá-la  poderia, ao menos de início, gerar equívocos. Com alguma espirituosidade, alguém  poderia defini-la como "tudo e nada, tudo ou nada...". Melhor dizendo, a  filosofia difere das ciências especiais na medida em que procura oferecer uma  imagem do pensamento humano - ou mesmo da realidade, até onde se admite que isso  possa ser feito -- como um todo. Contudo, na prática, o conteúdo de informação  real que a filosofia acrescenta às ciências especiais tende a desvanecer-se até  parecer não deixar vestígios. Acreditamos que esse desvanecimento seja enganoso.  Mas devemos admitir que até aqui a filosofia não tem conseguido realizar suas  grandes pretensões. Tampouco tem logrado êxito em produzir um corpo de  conhecimentos consensual comparável ao elaborado pelas diversas ciências. Isso  se deve em parte, embora não integralmente, ao fato de que, quando obtemos  conhecimento verdadeiro a respeito de determinada questão situamos essa questão  como pertencente à ciência e não à filosofia. 0 termo "filósofo" significava  originariamente "amante da sabedoria", tendo surgido com a famosa réplica de  Pitágoras aos que o chamavam de "sábio". Insistia Pitágoras em que sua sabedoria  consistia unicamente em reconhecer sua ignorância, não devendo portanto ser  chamado de "sábio", mas apenas de "amante da sabedoria". Nessa acepção,  "sabedoria" não se restringia a qualquer dos domínios particulares do pensamento  e, de modo similar, "filosofia" era usualmente entendida como incluindo o que  hoje denominamos "ciência". Esse uso sobrevive ainda hoje em expressões como  "filosofia natural". Na medida em que uma grande produção de conhecimento  especializado em um dado campo ia sendo conquistada, o estudo desse campo se  desprendia da filosofia, passando a constituir uma disciplina independente. As  últimas ciências que assim evoluíram foram a psicologia e a sociologia. Dessa  forma, poderíamos falar de uma tendência à contração da esfera da filosofia na  própria medida em que o conhecimento se expande. Recusamo-nos a considerar  filosóficas as questões cujas respostas podem ser dadas empiricamente. Não  desejamos com isso sugerir que a filosofia poderá acabar sendo reduzida ao nada.  Os conceitos fundamentais das ciências, da figuração geral da experiência humana  e da realidade (na medida em que formamos crenças justificadas a seu respeito)  permanecem no âmbito da filosofia, visto que, por sua própria natureza, não  podem ser determinados pelos métodos das ciências especiais. É sem dúvida  desencorajador que os filósofos não tenham logrado maior concordância com  respeito a esses assuntos, mas não devemos concluir que a inexistência de um  resultado por todos reconhecido signifique que esforços foram realizados em vão.  Dois filósofos que discordem entre si podem estar contribuindo com algo de  inestimável valor, embora ambos não estejam em condição de escapar totalmente ao  erro: suas abordagens rivais podem ser consideradas mutuamente complementares. O  fato de filósofos distintos necessitarem dessa mútua complementação torna  evidente que o ato de filosofar não é unicamente um processo individual, mas  também um processo que possui uma contrapartida social. Um dos casos em que a  divisão do trabalho filosófico se torna bastante proveitosa consiste na  circunstância de que pessoas distintas usualmente enfatizam aspectos diferentes  de uma mesma questão. Contudo, boa parte da filosofia volta-se mais para o modo  pelo qual conhecemos as coisas do que propriamente para as coisas que  conhecemos, sendo essa uma segunda razão pela qual a filosofia parece carecer de  conteúdo. No entanto, discussões a respeito de um critério definitivo de verdade  podem determinar, na medida em que recomendam a aplicação de um dado critério,  quais as proposições que na prática deliberamos serem verdadeiras. As discussões  filosóficas da teoria do conhecimento têm exercido, ainda que de modo indireto,  importante efeito sobre as ciências.

UTILIZAÇÃO DA FILOSOFIA

Há uma questão que muita gente formula de imediato quando ouve falar de  filosofia: qual a utilidade da filosofia? Não há certamente expectativa alguma  de que ela contribua para a produção de riqueza material. Contudo, a menos que  suponhamos que a riqueza material seja a única coisa de valor, a incapacidade da  filosofia de promover esse tipo de riqueza não implica que não haja sentido  prático em filosofar. Não valorizamos a riqueza material por si própria - aquela  pilha de papel que chamamos de dinheiro não é boa por si mesma -, mas por  contribuir para nossa felicidade. Não resta dúvida de que uma das mais  importantes fontes de felicidade, ao menos para os que podem apreciá-la,  consiste na busca da verdade e na contemplação da realidade; eis aí o objetivo  do filósofo. Ademais, aqueles que, em nome de um ideal, não classificaram todos  os prazeres como idênticos em seu valor, tendo chegado a experimentar o prazer  de filosofar, consideraram essa experiência como superior em qualidade a  qualquer outra. Visto que a maior parte dos bens que a indústria produz,  excetuando os que suprem nossas necessidades básicas, valem apenas como fontes  de prazer, torna-se a filosofia perfeitamente apta, no que se refere à  utilidade, para competir com a maioria dos produtos industriais, quando poucos  são os que podem dedicar-se, em tempo integral à tarefa de filosofar. Mesmo que  entendêssemos a filosofia como fonte de um inocente prazer particularmente  válido por si próprio (obviamente, não apenas para os filósofos, mas também para  todos aqueles a quem eles ensinam e influenciam), não haveria razão para invejar  tão pequeno desperdício da força humana dedicada ao filosofar.
Não esgotamos, porém, tudo o que pode ser dito em favor da filosofia. Pois, à  parte qualquer valor que lhe pertença intrinsecamente acima de seus efeitos, a  filosofia tem exercido, por mais que ignoremos isso, uma admirável influência  indireta até mesmo sobre a vida de gente que nunca ouviu falar nela.  Indiretamente, tem sido destilada através de sermões, da literatura, dos jornais  e da tradição oral, afetando assim toda a perspectiva geral do mundo. Em grande  parte, foi através de sua influência que se fez da religião cristã o que ela é  hoje. Devemos originalmente a filósofos idéias que desempenharam papel  fundamental para o pensamento em geral, mesmo em seu aspecto popular, como, por  exemplo, a concepção de que nenhum homem pode ser tratado apenas como um meio ou  a de que o estabelecimento de um governo depende do consentimento dos  governados. No âmbito da política, a influência das concepções filosóficas tem  sido expressiva. Nesse sentido, a Constituição norte-americana é, em grande  parte, uma aplicação das idéias do filósofo John Locke; ela apenas substitui o  monarca hereditário por um presidente. Similarmente, admite-se que as idéias de  Rousseau tenham sido decisivas para a Revolução Francesa de 1789. É inegável que  a influência da filosofia sobre a política pode às vezes ser nefasta: os  filósofos alemães do século X1X podem ser parcialmente responsabilizados pelo  desenvolvimento de um nacionalismo exacerbado que posteriormente veio a assumir  formas bastante deturpadas. Todavia, não resta dúvida de que essa  responsabilidade tem sido freqüentemente muito exagerada, sendo difícil  determiná-la exatamente, o que se deve ao fato de aqueles filósofos terem sido  obscuros. Contudo, se uma filosofia de má qualidade pode exercer influência  nefasta sobre a política, com as filosofias de boa qualidade pode ocorrer o  contrário. Não há meios de impedir tais influências sendo portanto extremamente  oportuno que dediquemos especial atenção à filosofia com o intuito de constatar  se concepções que exerceram alguma influência foram mais positivas do que  nefastas. 0 mundo teria sido poupado de muitos horrores caso os alemães tivessem  sido influenciados por uma filosofia melhor que a dos nazistas.
Torna-se, portanto, imperativo abandonar a afirmação de que a filosofia é  destituída de valor, mesmo com respeito à riqueza material. Uma boa filosofia,  ao influenciar favoravelmente a política, pode gerar uma prosperidade incapaz de  ser alcançada sob a égide de uma filosofia inferior. Outrossim, o expressivo  desenvolvimento da ciência, com seus conseqüentes benefícios de ordem prática,  muito depende de seu background filosófico. Houve mesmo quem tenha  chegado a afirmar, a nosso ver exageradamente, que o desenvolvimento da  civilização como um todo seria concomitante às mudanças na idéia de causalidade,  da concepção mágica de causalidade à científica. De qualquer modo, a idéia de  causalidade faz parte do objeto da filosofia. A própria ‘perspectiva  científica’, em grande parte, foi introduzida inicialmente pelos filósofos.
Todavia, certamente não estaremos nas melhores condições para fazer um estudo  proveitoso da filosofia se a encararmos principalmente como uma via indireta de  acesso à riqueza material. A principal contribuição da filosofia consiste no  intangível background intelectual do qual muito dependem o clima  espiritual e a feição geral de uma civilização. Nesse sentido, ocasionalmente se  desenvolvem ambições ainda maiores. Whitehead, um dos mais expressivos e  acatados pensadores modernos, descreve os dons da filosofia como "a capacidade  de ver e de prever, aliada a um sentido do valor da vida, ou seja, o sentido da  importância que anima todo esforço civilizado".1 Acrescenta ainda  Whitehead que, "quando uma civilização atinge seu auge sem coordená-lo com uma  filosofia de vida, difundem-se por toda a comunidade períodos de decadência e  monotonia, seguidos pela estagnação de todos os esforços". Para ele, a filosofia  consiste em "uma tentativa de esclarecer as crenças que, em última instância,  determinam nossa atenção, a qual integra a base de nosso caráter". De um modo ou  de outro, podemos ter como certo que o caráter de uma civilização é enormemente  influenciado por sua concepção geral da vida e da realidade. Até pouco tempo,  para a maioria das pessoas, essa concepção era proporcionada pelo ensino  religioso, mas as próprias concepções religiosas foram muito influenciadas pelo  pensamento filosófico. Ademais, a experiência demonstra que as concepções  religiosas podem conduzir-nos à loucura, a menos que sejam continuamente  submetidas a uma avaliação racional. Os que rejeitam qualquer concepção  religiosa devem ter o maior interesse em elaborar uma nova concepção para, se  possível, substituir a crença religiosa. E fazê-lo significa engajar-se na  filosofia.
Embora não passa substituir a filosofia, a ciência suscita problemas  filosóficos. Pois ela não pode dizer-nos que lugar ocupam os fatos com que lida  no esquema geral das coisas, não conseguindo nem mesmo esclarecer suas relações  com os espíritos que os observam. Nem mesmo pode demonstrar, embora deva  admitir, a existência do mundo físico ou a legitimidade do uso dos princípios da  indução para prever as prováveis ocorrências futuras ou ultrapassar de alguma  forma o que tem sido efetivamente observada. Nenhum laboratório científico pode  demonstrar em que sentido os homens têm uma alma, se o universo tem ou não um  propósito, se, e em que sentido, somos livres, e assim por diante. Não desejamos  com isso sugerir que a filosofia possa resolver esses problemas; no entanto, se  ela realmente não puder, nada mais poderá fazê-lo, sendo certamente válido  tentar descobrir ao menos se tais problemas podem ser solucionados. Veremos, que  a própria ciência pressupõe continuamente conceitos que subsumem os domínios da  filosofia E, da mesma forma que nenhuma ciência pode florescer se não admitirmos  tacitamente uma resposta para certas questões filosóficas, não podemos fazer uso  mental adequado da ciência, com o intuito de implementar nosso desenvolvimento  intelectual, sem admitirmos uma visão de mundo mais ou menos coerente. Mesmo as  melhores conquistas da ciência moderna não teriam sido alcançadas se os  cientistas não tivessem adotado determinadas suposições de grandes e originais  filósofos, nas quais basearam todo o seu proceder. A concepção "mecanicista" do  universo, que caracterizou a ciência durante os últimos três séculos, é derivada  principalmente do filosofia de Descartes. Por ter ocasionado maravilhosos  resultados, o esquema mecanicista deve ser, em parte, verdadeiro, ainda que  parcialmente inadequado, apressando-se o cientista em buscar no filósofo o  necessário auxílio para erigir novo esquema que possa substituir o antigo.
Um segundo serviço inestimável prestada pela filosofia (especialmente pela  "filosofia crítica") reside no hábito, por ela estimulado, de promover-se um  julgamento imparcial considerando-se todas as facetas de uma questão, e na idéia  que ela oferece do que seja a evidência e de que devemos buscar ou esperar de  uma prova. Pode ser esse um importante questionamento das inclinações emocionais  e das conclusões precipitadas, sendo especialmente necessário, e com freqüência  negligenciado, em controvérsias políticas. Se ambos os lados considerassem suas  diferenças políticas munidos de espírito filosófico, seria difícil admitir a  eventualidade de uma guerra. O sucesso da democracia depende muito da habilidade  dos cidadãos em distinguir um bom de um mau argumento, não se deixando enganar  por confusões. A filosofia crítica estabelece um padrão ideal para o raciocínio  correto e capacita quem a estuda a remanejar argumentos confusos. Talvez seja  esse a motivação pela qual Whitehead afirma, na passagem acima citada, que  "nenhuma sociedade democrática poderá alcançar êxito sem que a educação geral  que a inspire exprima uma perspectiva filosófica".
Na medida em que admitirmos que certa cautela é desejável ao afirmarmos que  os homens não deixam de viver de acordo com uma filosofia na qual acreditam, e  enquanto atribuirmos a maior parte dos desacertos humanos exatamente à falta  desse desejo de sintonia com ideais mais nobres, não poderemos negar a extrema  relevância de crenças gerais a respeito da natureza do universo e do bem para a  determinação da progresso ou da degeneração da humanidade. Algumas partes da  filosofia inegavelmente produzem resultados práticos mais expressivos, mas não  devemos por isso incorrer no erro de supor que a aparente inexistência de um  suporte de ordem prática para determinado campo de estudo implica que a  investigação desse campo seja destituída de sentido prático. Conta-se que um  cientista, que costumava jactar-se de desprezar a dimensão prática de toda  pesquisa, disse certa vez a respeito de uma: "0 melhor disso tudo é que ela  possivelmente não revelará qualquer utilidade prática para quem quer que seja."  Todavia, essa linha de pesquisa acabou levando à descoberta da eletricidade. De  modo similar, estudos filosóficos por demais acadêmicos e aparentemente  destituídos de utilidade prática terminam por exercer profunda influência sobre  a visão de mundo, chegando até mesmo a afetar, em última instância, a ética e a  religião que adotamos. Pois as diferentes partes da filosofia, os diferentes  elementos que compõem nossa visão de mundo, deveriam integrar-se. Tal é pelo  menos o objetivo, nem sempre alcançável, de uma boa filosofia. Sendo assim,  conceitos à primeira vista muito distanciados de qualquer interesse de ordem  prática podem vir a afetar de modo vital outros conceitos que envolvem mais de  perto a vida diária.
Podemos compreender agora o motivo pelo qual a filosofia não precisa recear a  questão de ter ou não valor prático. Devo ao mesmo tempo dizer que não aprovo de  modo algum uma concepção puramente pragmática da filosofia. A filosofia merece  ser valorizada por si própria, e não por seus efeitos indiretos de ordem  prática. E a melhor maneira de assegurarmos esses bons efeitos práticos é nos  dedicarmos à filosofia pela filosofia. Para encontrar a verdade, precisamos  buscá-la desinteressadamente. E o fato de a encontrarmos se revelará muito útil  do ponto de vista prático. Não obstante, uma preocupação prematura com seus  efeitos práticos só dificultará nossa busca do que é de fato verdadeiro. Muito  menos podemos fazer desses efeitos práticos o critério de sua verdade. As  crenças são úteis porque são verdadeiras, e não verdadeiras porque são  úteis.2
 
PRINCIPAIS DIVISÕES DA FILOSOFIA
A seguinte classificação é usualmente aceita como uma especificação dos  diversos assuntos que compõem a filosofia.
(1) Metafísica.3 Essa disciplina é concebida como o estudo da  natureza da realidade em seus aspectos mais gerais, na medida em que podemos  fazê-lo. Ela lida com questões do seguinte tipo: De que modo a matéria se  relaciona com o espírito? Qual dos dois é anterior? São os homens livres? 0 que  chamamos de eu (self) é uma substância ou apenas uma seqüência de  experiências? É o universo infinito? Deus existe? Até que ponto o universo é uma  unidade ou uma diversidade? Até que ponto um sistema é racional?
(2) Recentemente, a filosofia crítica tem sido freqüentemente contraposta à  metafísica (que nesse caso é às vezes denominada filosofia especulativa). A  filosofia crítica consiste na análise e na crítica dos conceitos pertencentes ao  senso comum e às ciências. As ciências pressupõem certos conceitos que não são  suscetíveis de investigação por meio de métodos científicos, de modo que passam  a integrar o âmbito da filosofia. Nesse sentido, todas as ciências, com exceção  da matemática, pressupõem de alguma forma a concepção de lei natural; cabe à  filosofia, e não a qualquer das ciências particulares, examinar tal concepção.  De modo similar, pressupomos, em nossos diálogos mais comuns e menos  filosóficos, conceitos fortemente imbuídos de problemas filosóficos, como  matéria, espírito, causa, substância e número. Uma importante tarefa da  filosofia consiste exatamente em analisar conceitos desse tipo, precisar o que  significam e determinar em que medida sua aplicação ao estilo do senso comum  pode ser justificada. A parte da filosofia crítica que trata da investigação da  natureza e dos critérios de verdade, assim como da maneira pela qual obtemos  conhecimento, é chamada de epistemologia (teoria do conhecimento). Questões  específicas desse campo são, entre outras, as seguintes: Como podemos definir a  verdade? Qual a distinção entre conhecimento e crença? Podemos estar certos  daquilo que sabemos'? Quais as funções relativas do raciocínio, da intuição e da  experiência sensorial?
No presente trabalho, iremos ocupar-nos desses dois ramos da filosofia , como  constituindo sua parte filosófica mais fundamental e característica. Apontaremos  ainda algumas disciplinas suplementares, que possuem certa afinidade com a  filosofia na acepção que lhe atribuímos neste livro, embora dela sejam distintas  na medida em que são dotadas de relativa autonomia. Esses são os ramos que  definiremos a seguir.
 
FILOSOFIA E DISCIPLINAS AFINS
(1) É difícil separar a lógica da epistemologia. Mesmo assim, ela é  normalmente considerada uma disciplina autônoma. Trata-se de um estudo dos  diferentes tipos de proposições e de suas relações que justificam uma  inferência. Certas partes da lógica revelam acentuada afinidade com a  matemática; outras poderiam igualmente ser classificadas como pertencentes à  epistemologia.
(2) A ética ou filosofia moral lida com os valores e a problemática do  "dever". Ela formula questões como; Qual o bem supremo? Qual a definição de bem?  A retidão de um ato depende unicamente de suas conseqüências? Nossos juízos  sobre nossos próprios deveres são subjetivos ou objetivos? Qual a função de um  ato punitivo? Qual a razão última pela qual não devemos mentir?
(3) A filosofia política consiste na aplicação da filosofia (da ética  principalmente) a questões relacionadas com os indivíduos enquanto organizados  sob a égide de um Estado. Ela investiga questões do seguinte tipo: Um indivíduo  possui direitos que contrariam os interesses do Estado? Há no Estado algo mais  além dos indivíduos que o constituem? É a democracia a melhor forma de  governo?
(4) A estética consiste na aplicação da filosofia ao exame da arte e da noção  de beleza. É típico da estética formular questões do seguinte tipo: A beleza é  objetiva ou subjetiva? Qual é a função da arte? Para que aspectos de nossa  natureza apelam as diversas formas de beleza?
(5) 0 termo mais geral - teoria do valor - é às vezes utilizado de modo a  abranger o estudo dos valores considerados em si mesmos, embora esse ramo possa  ser incluído na ética ou na filosofia moral. De qualquer modo, é sempre possível  entendermos a noção de valor como uma concepção geral cujas espécies e  aplicações particulares são desenvolvidas pelas disciplinas apresentadas nos  itens (2), (3) e (4).
 
 A TENTATIVA DE EXCLUIR A METAFISICA EM FACE DA OBJEÇAO DE QUE MESMO A  FILOSOFIA CRI'TICA A PRESSUPÕE
 Diversas tentativas, algumas das quais discutiremos posteriormente, foram  feitas no sentido de excluir a metafísica como injustificável e confinar a  filosofia à sua versão crítica e às cinco áreas afins que mencionamos, na medida  em que podem ser consideradas uma abordagem ou um estudo crítico dos conceitos  da ciência e da vida prática. Tal concepção foi ocasionalmente expressa pela  afirmação de que a filosofia consiste, ou deve consistir, na análise das  proposições do senso comum. É óbvio que tal afirmação, quando se pretende  exclusiva, chega a ser exagerada. Pois, (1) mesmo que uma metafísica legítima e  positiva não seja possível, haverá certamente um campo de estudos que se ocupe  da refutação dos argumentos falaciosos que supostamente conduziriam a conclusões  metafísicas; e tal campo faria obviamente parte da filosofia. (2) A menos que as  proposições do senso comum sejam inteiramente falsas, sua análise deverá  fornecer-nos uma explicação geral daquela parcela da realidade à qual se referem  as proposições, ou seja, proporcionar, de algum modo, parte da explicação geral  do real que a metafísica busca oferecer. Nesse sentido, poderíamos dizer que, se  existir, o espírito - obviamente ele existe em certo sentido - podemos obter uma  metafísica do espírito a partir da análise das proposições do senso comum  relativas a nós mesmos, na medida em que tais proposições são verdadeiras - de  fato, seria difícil admitir que todas as nossas proposições do senso comum  acerca dos seres humanos possam ser de todo falsas. Talvez não seja essa uma  metafísica altamente elaborada e de grande alcance, mas de qualquer modo  envolverá genuínas proposições metafísicas. Mesmo se afirmarmos que tudo que  conhecemos é apenas aparência, a aparência implica uma realidade que aparece e  um espírito para o qual ela aparece, e como estes não podem também ser apenas  aparências, estaremos ainda admitindo alguma metafísica. Até mesmo behaviorismo  é uma metafísica. Não desejamos com isso afirmar a possibilidade atual ou mesmo  futura de ,ama metafísica, no sentido de um sistema elaborado que nos propicie  grande dose de informação sobre a estrutura geral da realidade e as coisas que  mais desejamos conhecer. Isso só pode ser feito ambulando, tentando-se  estabelecer e criticar as proposições metafísicas em questão. Não obstante, por  mais que sejamos apaixonadamente metafísicos, não passaremos sem a filosofia  crítica. A mera tentativa de dispensá-la acarretará a produção de uma metafísica  deplorável. Pois, mesmo na metafísica, devemos partir dos conceitos do senso  comum e das ciências, já que não dispomos de outros. Ademais, se nossos  fundamentos são seguros, devemos cuidadosamente analisá-los e examiná-los. Dessa  forma, não podemos separar totalmente a filosofia crítica da metafísica, o que  não impede um filósofo de atribuir muito maior importância a um desses  elementos.
 
A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS ESPECIAIS
A filosofia difere das ciências especiais com respeito a (1) sua maior  generalidade e (2) a seu método. Ela investiga os conceitos que são supostos  simultaneamente por inúmeras ciências diferentes, além das questões que não se  situam no âmbito das ciências. A ciência compartilha com o senso comum os  conceitos que demandam essa investigação filosófica, mas as descobertas de uma  ciência particular suscitam ou intensificam alguns problemas especiais, como,  por exemplo, n da ``relatividade", que exigem um tratamento filosófico por não  poderem ser discutidos adequadamente pela ciência em questão. Alguns pensadores,  como Herbert Spencer, conceberam essencialmente a filosofia como uma síntese dos  resultados das ciências, mas hoje em dia os filósofos, em geral, não adotam essa  concepção. Sem dúvida, se podemos obter resultados filosóficos através de  processos de síntese e generalização a partir das descobertas científicas, isso  deveria ser feito. Não obstante, o único modo de sabermos se podemos ou não  fazê-lo é tentar, e nesse ponto a filosofia não tem alcançado muito progresso  nem se revelado muito proveitosa. As grandes filosofias do passado consistiram  parcialmente numa investigação dos conceitos fundamentais do pensamento, em  tentativas de estabelecer fatos alegadamente distintos daqueles com os quais  lidava a ciência mediante métodos bastante diferentes dos científicos. Elas  comumente foram influenciadas, mais do que parece, pelo estado contemporâneo da  ciência, mas, sem dúvida, seria muito enganador descrevê-las essencialmente como  uma síntese dos resultados da ciência. Mesmo filósofos antimetafísicos, como  Hume, estiveram mais voltados para os pressupostos da ciência do que para seus  resultados.
Tampouco devemos admitir sem reservas, como uma verdade da filosofa, o  resultado ou suposição científica válido em sua própria esfera. Sabemos, por  exemplo, que a física contemporânea parece ter mostrado que o tempo da física é  inseparável do espaço, o que de modo algum nos autoriza a renunciar esse  resultado como um princípio filosófico pelo qual o tempo pressuporia o espaço.  Pois, pode ocorrer que o resultado em questão seja verdadeiro apenas com relação  ao tempo da física, e isso apenas porque o tempo da física é medido em termos de  espaço. Por conseguinte, não precisa ser verdadeiro com relação ao tempo da  nossa experiência, do qual o tempo da física é uma abstração ou construção. A  ciência pode progredir por meio de ficções metodológicas usando termos num  sentido invulgar que a filosofia tem de corrigir. 0 termo filosofia da ciência é  usualmente aplicado ao ramo da lógica que lida de maneira especializada com os  métodos das diversas ciências.
 
O MÉTODO DA FILOSOFIA COMPARADO AO MÉTODO CIENTÍFICO
Com respeito a seus métodos, a filosofia difere fundamentalmente das ciências  especiais. A não ser quando se aplica a matemática, todas as ciências utilizam  processos de generalização empírica, mas a filosofia reserva a tal método um  lugar muito modesto. Por outro lado, a tentativa de assimilar a filosofia à  matemática, embora muito freqüente, não tem sido bem-sucedida (exceto em  determinados ramos da lógica que, pela própria natureza, têm mais afinidade com  a matemática do que com os demais setores da filosofia). Particularmente, parece  humanamente impossível que os filósofos possam alcançar a certeza e a clareza  que caracterizam a matemática. Essa diferença entre os dois campos de estudo  pode ser atribuída a várias causas. Em primeiro lugar, não se tem mostrado  possível determinar, em filosofia, o significado dos termos do mesmo modo  inequívoco que em matemática. Assim sendo, seu significado pode mudar de forma  quase imperceptível ao longo de uma argumentação, sendo muito difícil nos  certificarmos de que diferentes filósofos utilizam a mesma palavra com o mesmo  sentido. Em segundo lugar, somente na matemática encontramos conceitos simples  formando a base de inúmeras inferências complexas e, todavia, rigorosamente  válidas. Em terceiro lugar, a matemática pura é hipotética, ou seja, não nos  pode dizer o que se passa no mundo real, como, por exemplo, o número de coisas  situadas num dado lugar, mas apenas o que ocorrerá se isso for verdade, como,  por exemplo, que encontraríamos 12 cadeiras numa sala caso lá houvesse 5 + 7  cadeiras. A filosofia, contudo, objetiva ser categórica, isto é, dizer-nos o que  de fato ocorre; conseqüentemente, em filosofia, não é apropriado, como  geralmente se faz em matemática, fazer deduções apenas a partir de postulados ou  definições.
Desse modo, é impossível encontrar uma analogia adequada entre os métodos da  filosofia e os de qualquer outra ciência. É igualmente impossível definir de  modo preciso qual é o método da filosofia, a não ser limitando de forma grotesca  o seu objeto. A filosofia não emprega um método único, mas uma variedade de  métodos que diferem de acordo com o objeto ao qual são aplicados. E a tentativa  de defini-los de maneira independente de sua aplicação carece de qualquer  propósito útil. De fato, isso é muito perigoso. Ne passado, ela freqüentemente  conduziu a uma limitação equivocada do escopo da filosofia, excluindo tudo  aquilo que não se sujeitasse ao controle de determinado método escolhido como  caracteristicamente filosófico. A filosofia requer grande variedade de métodos,  pois deve abranger em sua interpretação todo tipo de experiência humana. Não  obstante, ela está longe de ser meramente empírica, pois, tanto quanto possível,  tem a tarefa de apresentar uma imagem coerente dessas experiências e a partir  delas inferir o que pode ser inferido de uma realidade distinta da experiência  humana. No que se refere à teoria do conhecimento, deve a filosofia submeter a  uma crítica construtiva todas as modalidades de pensamento; contudo, devemos  reservar um lugar nessa visão para qualquer modo de pensar que se nos apresente  como autojustificado no que há de melhor em nossas reflexões comuns, e não  filosóficas, e não rejeitá-lo por diferir dos outros. Os critérios filosóficos  são, em linhas gerais, a coerência e a abrangência; o filósofo deve visar a  apresentação de uma visão coerente e sistemática da experiência humana e do  mundo, tão esclarecedora quanto o permita a natureza dos casos investigados, mas  não deve buscar coerência à custa de rejeitar aquilo que de direito é  conhecimento real ou crença justificada. Uma séria objeção a uma filosofia  consiste na acusação de que ela sustenta algo em que não podemos acreditar na  vida cotidiana. Essa objeção poderia ser feita a uma filosofia que logicamente  conduzisse, como algumas, à conclusão de que não há um mundo físico, ou de que  todas as nossas crenças, científicas ou éticas, carecem de qualquer  justificação.
 
FILOSOFIA E PSICOLOGIA
Há uma ciência que mantém uma relação bastante peculiar com a filosofia: a  psicologia. Na prática, é muito mais provável que as teorias psicológicas  particulares venham a exercer influência sobre um argumento filosófico ou, uma  teoria a respeito do bem e do mal do que as teorias particulares de uma ciência  física também válida a relação inversa: exceto com relação às partes que se  aproximam da fisiologia, a psicologia, mais do que qualquer setor particular da  física, corre o risco de sofrer as conseqüências adversas oriundas de um  equívoco de ordem filosófica. É provável que isso aconteça devido ao fato de que  apenas recentemente a psicologia emergiu como ciência especial, ao contrário do  que ocorreu com as ciências físicas, que há muito já haviam alcançado posição  estável, dispondo de bastante tempo para esclarecer seus conceitos básicos de  acordo com seus próprios objetivos. Há uma geração, a psicologia era comumente  ensinada por filósofos, sendo muito difícil considerá-la uma ciência natural.  Por conseguinte, não teve tempo para completar o processo de esclarecimento de  seus conceitos fundamentais, necessário para torná-los, se não filosoficamente  inquestionáveis, suficientemente claros e úteis para a prática da ciência em  questão. 0 estado contemporâneo da física sugere-nos que, quando uma ciência  atinge um estágio mais avançado, tende a se deparar mais uma vez com problemas  filosóficos. Poderíamos então afirmar que o período no qual uma ciência é  independente da filosofia não coincide com seu florescimento ou com os estágios  mais avançados de sua trajetória, mas com a longa fase que separa esses dois  extremos. Nesse sentido, a filosofia pode contribuir de algum modo para a  pendente reconstrução da física.
 
CETICISMO
Os filósofos têm-se preocupado muito com uma criatura bastante estranha: o  cético absoluto. Não obstante, tal pessoa não existe. Se existisse, refutá-lo  seria impossível. Similarmente, ele não nos poderia refutar ou afirmar alguma  coisa, nem mesmo seu ceticismo, sem contradizer a si mesmo, pois a afirmação de  que nenhuma espécie de conhecimento ou crença pode ser justificada é uma crença.  Em contrapartida, também não poderíamos provar que o cético está errado, na  medida em que toda prova deve admitir algo, ainda que seja alguma premissa, e  também as leis da lógica. Se o princípio da não-contradição não é verdadeiro,  não podemos refutar algum mediante o argumento de esse alguém está caindo em  contradição. Um filósofo não pode, portanto, partir ex nihilo e provar  tudo: ele é forçado a fazer certas suposições. Em particular, tem de admitir a  verdade das leis fundamentais da lógica, pois de outro modo não seria possível  utilizar argumentos de qualquer espécie ou mesmo formular quaisquer enunciados  significativos. Entre essas leis da lógica, assinalamos duas que são muito  importantes: trata-se dos princípios da não-contradição e do terceiro excluído.  Quando aplicados a proposições, o primeiro afirma que uma proposição não pode  ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa, enquanto o segundo afirma que toda  proposição deve ser verdadeira ou falsa. Quando os aplicamos a coisas, o  primeiro afirma que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo ou ter e não  ter uma qualidade ao mesmo tempo, e o segundo, que uma coisa é ou não é e possui  ou não uma qualidade. Concordamos em que esses princípios não soam de modo a  entusiasmar ninguém, mas o fato é que todo nosso conhecimento e todo nosso  pensamento dependem deles. Se a afirmação de algo não excluísse sua própria  contradição, nenhum significado poderia ser atribuído a qualquer asserção e  ninguém poderia jamais ser contestado, na medida em que tanto a asserção quanto  a refutação poderiam ser corretas. Não podemos negar que, em certos casos, pode  ser equivocado atribuir ou não a algo uma qualidade. Seria incorreto dizer que  certas pessoas são ou não calvas, não só devido à ausência de uma definição  precisa do que seja "calvo" mas também porque, na prática, "calvo" e "não-calvo"  significam extremos entre os quais reside uma classe intermediária de casos em  que não deveríamos aplicar um desses termos, e sim "parcialmente calvo" ou "mais  ou menos calvo".
Não se trata, portanto, de uma pessoa possuir ou não uma qualidade definida.  Todas as pessoas são dotadas de um grau particular de calvície, embora o uso dos  termos "calvo" e "não-calvo" não deixe claro a que graus de calvície desejamos  referir-nos. Tenho a impressão de que as objeções ocasionalmente feitas ao  princípio do terceiro excluído se escoimam em desentendimentos desse tipo. De  modo similar, o princípio da não-contradição é perfeitamente compatível com o  fato de um homem ser bom com relação a certo aspecto e mau com relação a outro,  ou mesmo com relação ao mesmo aspecto, ser bom num momento e mau em outro.
A filosofia deve também aceitar a evidência da experiência imediata , embora  essa atitude não nos leve tão longe quanto poderíamos esperar. Não dispomos  normalmente de experiência imediata sobre outros espíritos, a não ser o nosso,  sendo provável que a evidência da experiência imediata não possa dizer-nos que  os objetos físicos que parecemos experienciar existem independentemente de nós  mesmos. Tornaremos oportunamente a abordar essa questão. Logo constatamos que,  não obstante, deveremos fazer novas suposições, se quisermos admitir que  conhecemos certas coisas a respeito das quais a vida cotidiana não oferece  qualquer suporte para que possamos achar que as conhecemos realmente. Todavia,  não devemos concluir que a impossibilidade de se justificar uma crença do senso  comum mediante um argumento implica necessariamente sua falsidade. Pode ser que,  no nível do senso comum, possuamos um conhecimento genuíno ou uma crença  justificada que seja por si próprio estabelecido e que dispense uma justificação  filosófica. Não cabe ao filósofo, nesse caso, provar a verdade da crença, pois  isso pode ser impossível, mas dar-lhe a melhor explicação possível, examinando  acuradamente aquilo que ela envolve, Se usarmos a expressão "crença instintiva"  para denominar aquele tipo de crença que tomamos como evidentemente verdadeira  antes de qualquer crítica filosófica, e que continua a parecer evidentemente  verdadeira em nossa vida cotidiana após a crítica filosófica e a despeito dela,  podemos afirmar com Bertrand Russell - que não pode certamente ser acusado de  credulidade demasiada - que a única razão para rejeitar uma crença instintiva é  o fato de ela colidir com outras crenças instintivas, sendo um dos principais  objetivos da filosofia produzir um sistema coerente baseado em nossas crenças  instintivas, corrigindo-as o menos possível e só para preservar sua coerência.  Nesse sentido, já que a teoria do conhecimento só pode basear-se num estudo das  coisas reais que conhecemos e da maneira pela qual as conhecemos, podemos  afirmar que o fato de uma teoria filosófica em particular levar à conclusão de  que não podemos conhecer certas coisas que evidentemente conhecemos, ou que não  podemos justificar certas crenças que obviamente são justificadas, é mais uma  objeção à teoria filosófica em questão que ao conhecimento ou às crenças que ela  questiona. Por outro lado, seria tolice supor que todas as crenças do senso  comum devem ser verdadeiras da maneira como se nos apresentam. Talvez seja  função da filosofia aperfeiçoá-las, mas não descartá-las, ou alterá-las de modo  a torná-las irreconhecíveis.
 
FILOSOFIA E SABEDORIA PRÁTICA
A filosofia está associada tanto ao saber teórico quanto à sabedoria prática,  à qual aludimos através de expressões do tipo "considerar filosoficamente as  coisas". De fato, o sucesso da filosofia teórica não nos oferece qualquer  garantia de que seremos filósofos no sentido prático ou de que agiremos e  sentiremos de modo correto sempre que nos envolvermos em determinadas situações  práticas. Uma das doutrinas favoritas de Sócrates é a de que sempre podemos  fazer o bem desde que saibamos o que é o bem; não obstante, isso só é verdade se  acrescentamos ao significado do termo "saber" uma adequada nitidez emocional  daquilo que sabemos do ponto de vista teórico. 0 fato de sabermos (ou  acreditarmos) que fazer algo que desejamos iria acarretar muito mais sofrimento  a uma outra pessoa - o Sr. A - do que prazer para nós mesmos, sendo, em  conseqüência, não-recomendável, não nos impede, todavia, de praticar tal ação,  pois a idéia de causar sofrimento ao Sr. A poderia parecer-nos menos repugnante  que a de perdermos aquilo que cobiçamos. Na medida em que é inteiramente  impossível a qualquer ser humano sentir o sofrimento alheio com a mesma  intensidade que os seus, ocorre sempre a possibilidade de sermos tentados a  abandonar nossos deveres, fazendo-se necessário não apenas o conhecimento, mas  também o exercício da vontade. Nem somos constituídos de modo a ser sempre  fácil, quando somos abandonados à nossa própria moral, nos opormos a um forte  desejo, ainda que disso dependa nossa própria felicidade. A filosofia não é  garantia de nossa conduta correta ou do perfeito ajustamento de nossas emoções  às nossas crenças filosóficas. Nem mesmo do ponto de vista cognitivo é ela capaz  de nos dizer o que devemos fazer. Para isso, precisamos, além de princípios  filosóficos, não só do conhecimento empírico dos fatos relevantes e da  capacidade de prever as prováveis conseqüências, mas também de um insight  da situação particular, de maneira a podermos aplicar adequadamente nossos  princípios.
Obviamente, não é minha intenção afirmar que a filosofia não contribui para  vivermos uma vida exemplar, mas apenas que não pode por si só levar-nos a viver  de modo exemplar nem decidir o que seja esse tipo de vida. Insisto, entretanto,  em que ela pode, a esse respeito, pelo menos proporcionar valiosas sugestões. E  teria muito mais a dizer sobre a conexão entre filosofia e vida exemplar, se  incluísse neste livro uma discussão especial da ética, disciplina filosófica que  trata do bem e da ação correta. Não obstante, devemos fazer uma distinção entre  filosofia teórica, enquanto explicação do que é, e ética filosófica, enquanto  explicação do bem e da ação correta.
Não pretendo, ao recorrer a essa ilustração, dar a impressão de ser um  hedonista, ou uma pessoa convencida de que o prazer e a dor sejam os únicos  fatores relevantes para que se possa julgar uma ação boa ou má. Não sou  assim.
A metafísica ou a filosofia crítica nos é de pouca valia para decidirmos o  que devemos fazer. Pode levar-nos a conclusões que facilitem encararmos as  adversidades de maneira mais serena, mas isso depende da filosofa, não havendo  infelizmente acordo universal entre os filósofos quanto à possibilidade de uma  concepção otimista do mundo ser justificada filosoficamente. No entanto, devemos  seguir a verdade aonde quer que ela nos leve, já que nosso espírito, uma vez  desperto, não pode apoiar-se no que carece de justificativa, pois o pensamento  não pode ser uma falsidade. Ao mesmo tempo, devemos estudar atentamente e não  recusar-nos a ouvir as alegações dos que pensam ter alcançado, mediante recursos  que não podem ser incluídos nas categorias usuais do senso comum, verdades  inspiradoras e reconfortantes a respeito da realidade. Não devemos tomar como  certo que as pretensões de uma cognição genuína em matéria de experiência  místico-religiosa, com relação a um diferente aspecto da realidade, devam ser  necessariamente descartadas coma carentes de justificativa apenas por não se  ajustarem a um materialismo sugerido, mas de modo algum provado e, agora, nem  mesmo sustentado pela ciência moderna.
 Notas
 1 Whitehead, A. N., Adventures of Ideas, pg. 125.
2 Nossa crítica à atitude "pragmatista" encontra-se nas pgs. 53-4  e 63-4 adiante.
3 Esse termo tem origem no fato de ter sido discutido na obra de  Aristóteles que foi colocada após (meta) seu trabalho sobre a física.

 Bibliografia
 Whitehead, A. C.: The Function of Reason, Princeton: Princeton  University Press.